domingo, 13 de maio de 2012


CÂNTICO DA INICIAÇÃO


Quero sim, liberdade
Não ferir.
Quero sinceridade
Não mentir.
Mas pra ser livre
Como quero
Vou dissimular
Pois se eu for
Sempre sincero
Vou machucar

Quero sincronia
E desorganização
Quero sinfonia
E distorção
Quero simbiose
E solidão
Quero cinta
E calção
Quero sim
Quero não

Quero sindicância
E absolvição
Quero sincretismo
E desunião
Quero simetria
E deformação
Quero de cinqüenta
E de cenhão.
Quero sim
E não

Quando luto por justiça
Só fazem me advertir
Já, se luto por cobiça
Ensinam-me a persistir

Quero sinergia
E dispersão
Quero sintonia
E chiação
Quero singeleza
E ostentação
Quero sintaxe
E confusão
Quero sim
E não

Quero sintetização
E abstração
Quero sinuosidade
E direção
Quero simpatia
E objeção
Quero simplicidade
E complicação
Quero sim
E não

Já chega de me esforçar
Pra ser um bom rapaz

Quero uma revolução
Quero viver em paz
Wanderley Dantas dos Santos

terça-feira, 8 de maio de 2012



 
Acordes Dissonantes
(O Casulo – Delírios da Linguagem Verbal)

Em algum momento do passado hibernei...
Me acorde,
Acordes!

Estou entre acordado
luto contra esta visão turva
essa atitude sono-lenta
diante duma vida potencial
dum mundo potencial
com uma mente impotente.

Mesmo inconsciente e inconstante, conste
que se te tocar
tocando acordes dissonantes
é pra que acordes do teu sono
e me ajudes àcordar.

Ocaso
Wanderley Dantas dos Santos

O sol escaldante do verão já vai descendente atrás de mim. Há mais de quarenta minutos prossigo em meu objetivo, inabalável como o sol, outro escravo do déspota tempo, seguindo em seu trajeto imaginário pela abóbada celeste, rumo ao seu inevitável ocaso. As lágrimas que me umedecem as faces, apesar de abundantes, não chegam a precipitar-se ao chão. Sobem, vaporizadas pelo calor da tarde, ou são interceptadas por minhas mãos frenéticas que as esfregam compulsivamente enquanto dirigem a pick-up. A Serra do Cadeado, tão linda e fatal, retorce progressivamente a rodovia à minha frente. Cedendo à força centrifuga, nas curvas feitas sempre acima da velocidade prudente, o carro derrapa, atentando contra as vidas dos condutores que se aproximam desavisados. Penso mesmo em afrontar os carros ou permitir que a inércia conduza meu automóvel aos desfiladeiros que se me apresentam cada vez mais profundos e atraentes. Mas o meu objetivo é outro: a Pedra Branca.
Outrora, imerso em suas paisagens inebriantes e poderosas, o universo me revelara sua face mais bela. Daquele cume havia tocado o céu. Mas o tempo, senhor cruel e absoluto das desventuras humanas, levou minha estrela para sempre. A perda desse amor infinito deixou meu peito oco na mesma proporção. Não. Mais, muito mais!, pois o nada legado por algo antes glorioso, é mil vezes mais vazio. O vácuo é tamanho que me implode, me traga e leva comigo todos os que me cercam. Isso tem que parar...
Já posso ver a Pedra Branca. A cada curva, a cada tope, o pico emerge daquele revolto mar de pedras, resplandecendo sua majestade. Maculada pela incontível arrogância humana em invadir todos os espaços, o cume é coroado — coroa de espinhos por certo — pela gigantesca torre telefônica, atestando a supremacia do monte, com a rudeza de um carimbo que assinalasse que certa flor é a mais bela do jardim.
O alpe me alicia com um mesmerismo réptil. Caio sob a atração gravitacional que a rocha me impõe qual um corpo bruto a um buraco negro. Sem possibilidade de fugir, já que o próprio espaço se dobrou à sua força. Quanto mais próxima, mais sadicamente sedutora ela se torna e maior é minha velocidade. A atmosfera mais e mais densa que envolve aquele ícone monstruoso do meu tormento, incendeia minha mente ensandecida com a consciência cada vez mais lúcida do que já não possuo. Algoz, o pico perfura-me o peito, dilacera meu coração com a maestria diabólica do torturador, tornando a vida tão insuportável que faz desejar a morte e habilmente impede  o alcançar dessa graça que aliviaria as avessas, retirando a vida da dor.
Ao alcançar o sopé, deparo-me com o portão que cerceia a entrada. O vigia me assegura que não há possibilidade de subir. Certamente minha estampada amargura ratifica a determinação do porteiro em impedir minha escalada. Diante daquela inesperada e indúctil barreira, só me resta retroceder. Desnorteado, saio com a caminhonete e paro a poucos metros do acesso ao cimo, donde posso ver o horizonte ao longe. Com o olhar perdido no horizonte, numa repentina e suspeita trégua com o universo, como o olho dum furacão, clamo aos céus pedindo que me esclarecesse: “Que chance há para mim num mundo sem sentido como esse que me resta, já que perdi tudo que fazia sentido, tudo que me dava esperança e forças para prosseguir ?” Caindo de joelhos num choro patético, gritei aos céus com os braços estendidos, os punhos cerrados e tencionados como se pudesse assim projetar minha voz e fazer-me ouvir ao Senhor: — Responda ó déspota cruel!!! Terei de volta o que perdi?! — Ordeno enfurecido aos céus e entre soluços ratifico implorando — Responda Pai... — caindo de bruços, num pranto desolado.  Como que em resposta aos meus apelos desesperados, ao levantar o olhar, o sol, enrubescido e ampliado pela lente atmosférica que lhe confere beleza indescritível ao entardecer, brota de trás de nimbos, ofuscando-me os olhos desorientados. Com o girar impassível da Terra, o Astro Rei segue inabalável em seu movimento relativo. Colossal, soberano, ele ruma irrevogavelmente ao poente. Tudo ruma para o fim. Tudo que começa, acaba. Tudo que nasce, morre. É esse o sentido. É essa a resposta de Deus. A minha resposta é a infimidade humana! A impotência da razão ante da inevitabilidade das forças impiedosas do universo! A Estrela da Vida, persiste incólume em sua trajetória rumo ao poente, como uma mãe que mantém sua resposta, alheia ao pranto do filho. Observo-o catatônico, até o ocaso.
— Não!, — grito, fazendo-me ecoar por toda parte — eu não aceito ser tão medíocre!
Voltando à caminhonete, dou meia volta e, tracionado pelas quatro rodas, irrompo portão a dentro rumo ao pináculo, decidido a liquidar com minha vida. O píncaro, que com sua agudeza havia servido de engodo para a ilusória descoberta do “sentido da vida”, agora desmascarado, serviria de instrumento e testemunha da minha auto-execução. Mesmo tracionado por dois eixos, o carro derrapa sobre os seixos soltos que recobrem a trilha, em severo aclive, que conduz ao auge da elevação. Já não penso ou decido nada, apenas sigo o comando que me dei ao compreender a mensagem escrita pelos astros Terra e Sol que conspiraram para que eu pudesse ter, por um segundo, a consciência da verdade mascarada por aquele monte maldito. O pé, esmagando o pedal acelerador, desconhece os movimentos incontroláveis do meu corpo que é chacoalhado pelas ondulações e perfazem o caminho, de tal modo que mal posso segurar o volante. Não importa, nada importa, só acabar de vez com o tormento da minha irrelevância, da minha insignificância. Já quase no alto, avisto novamente o coruchéu metálico que então me parece um merecido adorno: Nariz de Pinóquio do embusteiro de pedra. O céu, ainda purpúreo, absorve meu olhar atordoado. Sinto um desejo profundo, quase uma oração interior, suplicando para eu encontrar um motivo para não prosseguir...
Subitamente, uma visão me retira do meu transe. Parece impossível! Talvez mais uma alucinação causada pela magia insidiosa da montanha, mas que respondeu ao meu verdadeiro anseio. O carro já vai desenfreado rumo ao perau alvacento. E só posso saltar. Pelo retrovisor a luz penetra meus olhos arrebatados. Mesmo devaneante com a queda no chão, somada a adrenalina que provavelmente substituíra meu sangue, vejo o automóvel precipitando-se da ladeira. Ainda deitado posso compreender o que meus olhos vêem, mas hesitam  em aceitar. É o final da mensagem astral, que precisava ser mal interpretada para poder ser compreendida. Daquela altura, e talvez somente daquela altura, o sol ainda podia ser visto em seu ocaso novamente. Era essa a mensagem. Tudo é relativo...
Tudo renasce, tudo recomeça.






Empatia em Demasia

 Wanderley Dantas dos Santos
Era o último em direção à minha cidade. Já na saída da cidade, o coletivo parou. Era o último ponto. Avistei então um amigo do colégio que há muito não via e pela janela trocamos algumas palavras enquanto os demais passageiros adentravam o ônibus:
— Vem nesse ônibus, sumido?
— Meu Deus! Há quanto tempo!
— Venha, conversamos no caminho. Eu seguro um lugar.
— Não... não vou.
— Ué?! Então porquê está no ponto?
— Vou de carona. Aqui é um bom lugar: o quebra-molas, a sombra... sabe como é.
— É, eu sei e bem... faz o seguinte, vem comigo, pago a sua passagem e conversamos.
— Ah... Seria um prazer, mas não. Vai tranqüilo, amigo, logo passa um. Outra hora conversamos.
Notei que o amigo carona não dissera o meu nome mas não me importei. Eu também não me lembrava o dele e queria realmente ajudá-lo. Pela companhia do velho amigo e por conhecer a sua situação: sou PhD em caronas.
— Faço questão. Se não quer aceitar minha oferta, entenda como um pedido. Também peguei muitas caronas aí. Ajudaram a mim, ajudo você. Além disso, nesse horário...
— Sinto decepcioná-lo, — interrompeu — agradeço mesmo a gentileza. Porém o fato é que tenho dinheiro, mas quero economizar e não seria justo aceitar sua ofert...  seu pedido.
— “Plínio”, para mim não muda nada. Mantenho a oferta.
A solicitude de outrora se tornara uma questão de pessoal e a súbita lembrança do seu nome, pintava com um tom altivo meu discurso altruísta. Para convencê-lo definitivamente, estendei-lhe a mão com uma nota que peguei no bolso. Não fiz conta. Plínio tomou-a nas mãos, mais por instinto que por gosto. Eu mantive um ar simpático, tentando evitar que o meu colega se sentisse constrangido com a minha excessiva solidariedade. Pensei mesmo em voltar atrás, em estar sendo impertinente.
— Tome o seu dinheiro — adiantou-se Plínio.
— Tudo bem, está sendo inconveniente, me desculpe. — Assim falando, estiquei a mão e pus a nota entre o indicador e o médio. Plínio, que ainda a segurava, puxou-a sem indelicadeza e replicou:
— Não. Não é isso! Eu confio em você. Sei que é de bom grado e, até por isso mesmo... só estou querendo ser correto. — Como Plínio prosseguia, retirei a mão, constrangido em mantê-la ao ar. Ele prosseguiu: — Não quero que interprete mal minha recusa, isso não. Sou-lhe grato, mas eu economizar às suas custas não pode ser.
— Plínio! Nos conhecemos há... o quê? Dez, quinze anos? — Apelei.
— Por aí.
— Se você fosse me emprestar um dinheiro, não o faria mais tranqüilo sabendo que eu economizo o meu? Ora vamos, é só um empréstimo. Depois você me paga, se isso o fizer sentir-se melhor.
— Tem certeza?
— Claro, Plínio, se ajudar.
Plínio sorriu e tomou a nota com as duas mãos. Vendo que ele finalmente parecia amolecer, empolguei-me:
—Tome, se ajudar a resolver o seu problema, fique com a nota. Quando puder, me paga, certo?
— Putz, cara. Ia me quebrar um galhão.
— Então está feito. Só te peço uma coisa... — mas ele não me deixou terminar  a frase, foi se afastando e dizendo:
—Não precisa nem falar cara. Se eu não ganhar pago você amanhã. E juro que se eu ganhar lhe dou metade.
— Como?
— É que eu sonhei com o 34 e ia de carona pra jogar quando chegasse em casa. Mas agora eu vou é jogar aqui mesmo.
— É, mas não...
— É-mas-não, nada. Dou metade, sim. Se não pegar, dou pra sua esposa ou mando por carta... Fui.
Envolvido num inexprimível constrangimento, desabafei a conclusão da frase retardadamente já sem a presença de Plínio que saíra como um raio:
—...Eu te dou a nota, mas preciso que você pague a minha passagem que este é todo o dinheiro que eu tenho no bolso.
Fui para casa de carona. 

De Saco Pra Mala

Wanderley Dantas dos Santos 

— Bom dia. Quatro pães e um leite, por favor.
— Ai! Desculpe... ufa... eu comi um quibe ainda a pouco e tinha muita pimenta... ff... Quantos pães? ... Hum! Está ardendo.
— Ah, uns... quatro. Você não devia comer essas frituras, assim de manhã. Ainda mais com tanto condimento. Dá logo seis, vai.
— Que nada “mata é o que sai da boca”...
— Falando nisso, você já soube da filha da D. Lourdes, não?
— O quê? Não vai me dizer que a Ana...
— Está!
— Grávida?
— Seis...
— Meses?!
— Pães. Eu vi que você pegou só quatro, eu quero seis.
— Ãh? Ah, Desculpa... é que eu nem imaginava... tão novinha... gente eu to boba! Nunca me passou...
— ...Ah, deu pra notar, sim. Ela estava engordando. Essas meninas estão perdendo o juízo.
— É a televisão. Novelas, filmes, até propaganda! Você disse seis pães, certo?
— Ah, eu nem sei... pode ser que a televisão ajude, mas... sei lá, parece que é tudo. Olha  as músicas: um escândalo! E depois, tem a moda. Uma roupa mais curta que a outra... difícil dizer o que está acontecendo.
— Pois eu digo e repito: TV, TV, TV. A televisão lança moda, lança música, costumes! É a janelinha do capeta. Ontem mesmo a Malu apareceu “numa cena”, você viu?
— E eu ia perder? Gente aquele cara é o máximo, como é mesmo o nome dele? Menina que pão.
— O pão! Gente onde é que eu estou com a cabeça. Você com pressa e eu aqui empatando você.
— Nem esquenta. Há essa hora o folgado já foi trabalhar.
— Sem o café?!
— Tss... tinha café e bolacha, o Maurício se vira.
— Maurício?
— Que Maurício?
— Você falou: “...o Maurício se vira”.
— Falei?! Não... Da onde que eu tirei esse Maurício... Maurício... Se o Paulinho ouve isso me mata.
    Isso! Mattar!
    Como é?
    Que estava lá ontem, com a Malu Mader.
— Isso! Ai Meu Deus, ainda bem que o Paulinho não assiste novela. Eu chego a ficar sem graça. Ei! Eu não quero desse pão, não. Me dá o da padaria lá de cima.
— Eu gosto mais daquele também.
— É? E por que você pega desse, tem gente que prefere?
— Que nada. É que o padeiro lá de cima chega muito tarde. Pra você ver, ainda não chegou.
— Deve ficar lá sonhando com a Ana.
— Não?!
— O quê?
— É dele?!
— Delíssimo!
— E vão casar?
— Hum... se não casar a bruxa da Lourdes ferve ele no caldeirão. Eu vou levar desse mesmo.
— E o que mais?
— O leite.
— O leite, claro. Não falei que eu estou ficando louca?
— Loucas são essas adolescentes.
— Isso é assim mesmo.
— Você fala assim porque casou com dezessete.
— É, mas foi um escândalo, você lembra?
— Se lembro? Morri de inveja.
— É? Por quê? Caixinha?
— Ah! Sei lá... Não, saquinho mesmo. A Caixinha está muito cara. Coisa de adolescente, eu acho. No final parece que foi sempre assim, não é? Nessas coisas de amor, acho que sim. O queijo está bem fresquinho?
— Que nada: amor... É sexo, isso sim. A gente é que é boba e não sabe separar. É uma delícia.
— Hã?
— O queijo. O queijo é uma delícia... sua boba.
— Ah! Sexo também. É por isso que a coisa é assim. Eu vejo pela minha avó. Casou com quinze anos! Veja só, e nem havia TV.
— Gente, isso é um pecado. A minha também, com catorze, acredita? Seu leite. Sua filha vai matar você.
— A Cristina? Depois que começou a estudar a noite, só acorda quando eu chamo. Se não chamar, não acorda. Parece uma pedra!
— É que congelou. Esse freezer está meio descontrolado. Ao menos não assiste novela.
— Nem gosta. Lá em casa só eu.
— É? Meu marido é pior que eu.
— O meu diz que é uma perda de tempo, “dá pra assistir uma vez na semana e saber tudo o que está acontecendo”.
— E o que ele fica fazendo?
— Fica no quarto vendo futebol — risos.
— Virgem Santa, que susto! Achei que o relógio da parede estava funcionando.
— E está. Só o ponteiro dos segundos que despencou. Toma seu queijo.
— O quê?
— O queijo.
— Mas o meu está marcando nove e meia!
— Deixe-me ver. Ih... parou.
— Ai, meu Pai! Esquece o pão e o leite. Eu quero batatas...

Mãe é Mãe...

 Wanderley Dantas dos Santos
Eram irmãos. Desde a infância a vida lhes havia sorrido. Não eram ricos, mas a vida na Casa Amarela, sede do Sítio Lusíadas, transformava qualquer existência em alegres e intensas férias. Assim era com Dona Carolina, que vivia apenas com os dois filhos. O marido, um caminhoneiro português, havia morrido quando os dois meninos eram ainda muito pequenos. Assim, criou os dois filhos sozinha. Ensinou a ler, a contar, a botânica e farmácia empíricas, a zoologia a seu modo e até o italiano que apreendera da mãe. Mas, ao seu tempo, freqüentar a escola tornou-se imperativo.

Ma que! E esse olho roxo... — questiona D. Carolina.
— Foi a Letícia, mama.
— E o que você fez pra ela?
— Nada. — Diz ele em tom precocemente choroso. 
— Fala, moleque... — e já foi torcendo a orelha.
— Eu só pedi pra colocar minhas canetas no estojo dela...
— E a malvada não deixou e ainda bateu em você? Explica essa história, hã?
— Só isso mãe, só que eu falei em italiano: lecha-me pore mias pennis em tua borceta?

Dona Carolina ia com eles os três quilômetros que separavam a casa da estrada onde passava o ônibus escolar. Iam e vinham cantando e ouvindo as histórias vividas pelo pai caminhoneiro, que D. Carolina lhes contava para manter viva a imagem paterna na memória dos filhos.

— Um dia, quando você tinha uns quatro pra cinco anos — contava D. Carolina, dirigindo-se ao mais velho — seu pai bateu a camioneta numa árvore e amassou o pára-choque. Alguns dias depois, inconformado com o pára-choque amassado, ele resolveu desentortá-lo. Pegou uma corda, amarrou uma ponta numa arvorezinha em frente de casa e a outra ponta no pára-choque torto. Lá estava ele dando marcha ré no carro enquanto eu o instruía com as mãos e dizendo: “Mais um pouco... devagar. Vai mais, força...”. Dali a pouco chega você, vê o carro patinando com a corda amarrada na árvore e, balançando a cabeça e diz para o seu pai:
— Papa, quer que eu busque a moto-serra? — Seu pai deve estar rindo até hoje...

Na escola como em tudo, iam bem. Não eram os anjinhos da sala, mas as notas eram boas. A professora, afinal apenas repetia, com uma linguagem mais sofisticada, o que a mãe já lhes havia ensinado sem eles perceberem que estavam aprendendo. Eles tinham uma imaginação perigosamente grande. O caçula tinha fixação por voar.
De cima do abacateiro, vestido com asas grotescas, grita o caçula, pro irmão que vinha chegando.
— Mano, avisa pra mãe que eu vou voando até a cidade, mas já volto!
— Não faça isso... — tenta impedir o irmão, mas não adiantou... Em vinte minutos o pequeno Ícaro estava na cidade. Foi levado “voando” para o hospital: duas costelas e uma perna quebradas, além de várias escoriações.

Fora a mãe também, que iniciara o mais velho na direção. Com apenas dez anos, ele já sabia: seria caminhoneiro, como o pai. A partir de então só tinha olhos para a velha Willys, amarela como a casa — cor preferida da mãe — dourada como os sonhos infantis. Afastado do irmão mais velho devido a sua nova fixação, o caçula começara uma “promissora” amizade com a filha dos vizinhos. Brincaram e namoram por mais de uma década. Ele também aprendeu a dirigir e em pouco tempo exibia a habilitação de caminhoneiro, como a do pai e do irmão.

O tempo impiedoso como é, correu com afã cruel como sempre o faz onde há muita felicidade. Assim, mãe “temporã” — como diziam suas primas e irmãs — D. Carolina já ia doente no início da vida adulta dos seus bambinos. Gorda e enfraquecida, agravada pela diabete que ela desprezava a despeitos dos apelos do médico da família, D. Carolina sabia que a vida já não seria longa. Dedicou seus últimos esforços e economias para ajudar os filhos a comprarem os caminhões com que começariam as vidas. Assistiu ainda ao casamento do mais moço e poucos anos depois, morreu feliz.
Já meio afastados pela vida itinerante dos caminhoneiros, encontraram-se no enterro da mãe e ali mesmo, concluíram que não ofenderiam a memória da mãe se vendessem o Sítio Lusíadas e empregassem o capital na compra de carretas. Assim fizeram. Após alguns dias realizaram o negócio e, para comemorar, passaram aquela noite bebendo vinho e relembrando as histórias do pai e da mãe... Supermãe que tinham tido a sorte de ter. Despediram-se com uma profecia banalizada: — “A gente se cruza...”. E nunca mais voltaram a se encontrar.

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Eu conheci sua história no profético dia em que, finalmente, se cruzaram. Eu abastecia o carro ao entardecer de um dia frio de outono. Uma carreta âmbar metálico havia acabado de abastecer, dele ouvi a história da esposa vizinha:
— É o mal de casar com a vizinha, eu devia ter namorado outras, talvez você não fosse tão ciumenta, caspita!(...)
Percebi o sotaque interiorano, e vi a foto da D. Carolina (?) que figurava no painel, cujo nome deduzi do luminoso sobre o pára-brisa “Carolines”.  Eu observava a frase do pára-barro: “Mais um lusíada, desbravando o mundo...”, enquanto ele se afastava lentamente.
Fortuitamente, cruzou-se no pátio daquele posto, com outra carreta âmbar. As duas quase douradas, de matizes apenas levemente diversos, mas com a mesma placa sobre o retrovisor “Carolines”. Após cruzarem-se, seguiram ainda, por alguns segundos em direções opostas, como que distraidamente, quando então se entreolharam pelos retrovisores e, varridos por uma transbordante ansiedade,  frearam, brusca e simultaneamente. Naquele instante, certamente, lembraram-se, como num flash, da vida bucólica da infância. Desceram com os olhos brilhantes e seguiram sofregamente em direção ao encontro que há tanto aguardavam. Lembravam provavelmente das peraltices da escola, das brigas, das namoradas. Caminharam, marcharam e aceleram até correrem para enfim colidirem num abraço vigoroso, terno e silencioso, cujas lágrimas embotadas e os olhares saudosos exprimiam todos os seus sentimentos. Lembravam especialmente da mãe, sim, a mãe que tanto lhes havia permeado as existências. Antes de tudo a mãe. Por isso ela se fez presente em suas memórias até naquela única frase que, em coro, disseram e repetiram para expressar o amor que sentiam entre si e a saudade e importância da mãe em suas vidas:
    “Puta que o pariu, mano véio!!!”
Admito que possa haver algumas distorções entre a realidade e o conto, mas, creia-me, foi quase assim.

Convocação do IPM



Há pessoas que não se sentem bem ajustadas ao sistema. Sofrem por conviver com pessoas que não as compreendem e acabam se frustando por não atingirem seus objetivos. Se você é uma dessas pessoas aliste-se no IPM:
O seu país precisa e você!
Se você é o melhor em quase tudo que faz, mas nem sempre é reconhecido.
Se é mais inteligente que a maioria das pessoas com quem convive. Ou se tem habilidades excepcionais como distinguir objetos a uma distância acima da média, reconhecer temperos, pratos de refeições, ou até pessoas, apenas pelo cheiro que exalam.
Se, apenas pelo timbre da voz, você costuma reconhecer quem esta falando ao telefone ou em situações em que ninguém reconheceria. Ou nos esportes, se você é quase sempre mais rápido, mais habilidoso, mais forte, mais resistente - e até erra e perde algumas vezes para não parecer que esta se exibindo.
Se você tem idéias originais e é tratado como louco ao expô-las.
Se, apesar de sua gritantante e incontível criatividade, você tem dificuldade em arrumar emprego e, quando consegue, em adaptar-se a eles pois eles desprezam as suas faculdades.
Se nos concursos você faz redações dignas dos grandes escritores e mesmo assim é reprovado.
Se você sofre porque nas discussões tenta convencer o seu interlocutor que, não reconhecendo a sua razão, teima em debater com você.
Se você sente que é o melhor e se enquadra em alguns dos itens acima (quem sabe todos?), percebe que possui um talento privilegiado e sabe que o que lhe falta é apenas alguém para reconhecê-lo, instruí-lo, treiná-lo, enfim, aperfeiçoar o que Deus lhe deu, então ligue pra nós.
AGORA VOCÊ TEM COMO AJUDAR A SUA PÁTRIA!
Contate-nos:

Instituto Psiquiátrico para Megalomaníacos.
SOMENTE AQUI VOCÊ SERÁ COMPREENDIDO.
INTERNE-SE PARA O BEM DE SEU PAÍS.