Mãe é
Mãe...
Wanderley Dantas dos Santos
Eram irmãos. Desde a infância a vida lhes havia
sorrido. Não eram ricos, mas a vida na Casa Amarela, sede do Sítio Lusíadas,
transformava qualquer existência em alegres e intensas férias. Assim era com
Dona Carolina, que vivia apenas com os dois filhos. O marido, um caminhoneiro
português, havia morrido quando os dois meninos eram ainda muito pequenos.
Assim, criou os dois filhos sozinha. Ensinou a ler, a contar, a botânica e
farmácia empíricas, a zoologia a seu modo e até o italiano que apreendera da
mãe. Mas, ao seu tempo, freqüentar a escola tornou-se imperativo.
— Ma que!
E esse olho roxo... — questiona D. Carolina.
— Foi a Letícia, mama.
— E o que você fez pra ela?
— Nada. — Diz ele em tom precocemente choroso.
— Fala, moleque... — e já foi torcendo a orelha.
— Eu só pedi pra colocar minhas canetas no estojo
dela...
— E a malvada não deixou e ainda bateu em você?
Explica essa história, hã?
— Só isso mãe, só que eu falei em italiano: lecha-me pore mias pennis em tua borceta?
Dona Carolina ia com eles os três quilômetros que
separavam a casa da estrada onde passava o ônibus escolar. Iam e vinham
cantando e ouvindo as histórias vividas pelo pai caminhoneiro, que D. Carolina
lhes contava para manter viva a imagem paterna na memória dos filhos.
— Um dia, quando você tinha uns quatro pra cinco
anos — contava D. Carolina, dirigindo-se ao mais velho — seu pai bateu a
camioneta numa árvore e amassou o pára-choque. Alguns dias depois, inconformado
com o pára-choque amassado, ele resolveu desentortá-lo. Pegou uma corda,
amarrou uma ponta numa arvorezinha em frente de casa e a outra ponta no
pára-choque torto. Lá estava ele dando marcha ré no carro enquanto eu o
instruía com as mãos e dizendo: “Mais um pouco... devagar. Vai mais, força...”.
Dali a pouco chega você, vê o carro patinando com a corda amarrada na árvore e,
balançando a cabeça e diz para o seu pai:
— Papa, quer que eu busque a moto-serra? — Seu pai
deve estar rindo até hoje...
Na escola como em tudo, iam bem. Não eram os
anjinhos da sala, mas as notas eram boas. A professora, afinal apenas repetia,
com uma linguagem mais sofisticada, o que a mãe já lhes havia ensinado sem eles
perceberem que estavam aprendendo. Eles tinham uma imaginação perigosamente grande.
O caçula tinha fixação por voar.
De cima do abacateiro, vestido com asas grotescas,
grita o caçula, pro irmão que vinha chegando.
— Mano, avisa pra mãe que eu vou voando até a
cidade, mas já volto!
— Não faça isso... — tenta impedir o irmão, mas não
adiantou... Em vinte minutos o pequeno Ícaro estava na cidade. Foi levado
“voando” para o hospital: duas costelas e uma perna quebradas, além de várias
escoriações.
Fora a mãe também, que iniciara o mais velho na
direção. Com apenas dez anos, ele já sabia: seria caminhoneiro, como o pai. A
partir de então só tinha olhos para a velha Willys, amarela como a casa — cor
preferida da mãe — dourada como os sonhos infantis. Afastado do irmão mais velho
devido a sua nova fixação, o caçula começara uma “promissora” amizade com a
filha dos vizinhos. Brincaram e namoram por mais de uma década. Ele também
aprendeu a dirigir e em pouco tempo exibia a habilitação de caminhoneiro, como
a do pai e do irmão.
O tempo impiedoso como é, correu com afã cruel como
sempre o faz onde há muita felicidade. Assim, mãe “temporã” — como diziam suas
primas e irmãs — D. Carolina já ia doente no início da vida adulta dos seus
bambinos. Gorda e enfraquecida, agravada pela diabete que ela desprezava a despeitos
dos apelos do médico da família, D. Carolina sabia que a vida já não seria
longa. Dedicou seus últimos esforços e economias para ajudar os filhos a
comprarem os caminhões com que começariam as vidas. Assistiu ainda ao casamento
do mais moço e poucos anos depois, morreu feliz.
Já meio afastados pela vida itinerante dos
caminhoneiros, encontraram-se no enterro da mãe e ali mesmo, concluíram que não
ofenderiam a memória da mãe se vendessem o Sítio Lusíadas e empregassem o capital
na compra de carretas. Assim fizeram. Após alguns dias realizaram o negócio e,
para comemorar, passaram aquela noite bebendo vinho e relembrando as histórias
do pai e da mãe... Supermãe que tinham tido a sorte de ter. Despediram-se com
uma profecia banalizada: — “A gente se cruza...”. E nunca mais voltaram a se
encontrar.
• • •
Eu conheci sua história no profético dia em que,
finalmente, se cruzaram. Eu abastecia o carro ao entardecer de um dia frio de
outono. Uma carreta âmbar metálico havia acabado de abastecer, dele ouvi a
história da esposa vizinha:
— É o mal de casar com a vizinha, eu devia ter
namorado outras, talvez você não fosse tão ciumenta, caspita!(...)
Percebi o sotaque interiorano, e vi a foto da D.
Carolina (?) que figurava no painel, cujo nome deduzi do luminoso sobre o
pára-brisa “Carolines”. Eu observava
a frase do pára-barro: “Mais um lusíada, desbravando o mundo...”, enquanto ele
se afastava lentamente.
Fortuitamente, cruzou-se no pátio daquele posto,
com outra carreta âmbar. As duas quase douradas, de matizes apenas levemente
diversos, mas com a mesma placa sobre o retrovisor “Carolines”. Após
cruzarem-se, seguiram ainda, por alguns segundos em direções opostas, como que
distraidamente, quando então se entreolharam pelos retrovisores e, varridos por
uma transbordante ansiedade, frearam,
brusca e simultaneamente. Naquele instante, certamente, lembraram-se, como num
flash, da vida bucólica da infância. Desceram com os olhos brilhantes e
seguiram sofregamente em direção ao encontro que há tanto aguardavam. Lembravam
provavelmente das peraltices da escola, das brigas, das namoradas. Caminharam,
marcharam e aceleram até correrem para enfim colidirem num abraço vigoroso,
terno e silencioso, cujas lágrimas embotadas e os olhares saudosos exprimiam
todos os seus sentimentos. Lembravam especialmente da mãe, sim, a mãe que tanto
lhes havia permeado as existências. Antes de tudo a mãe. Por isso ela se fez
presente em suas memórias até naquela única frase que, em coro, disseram e
repetiram para expressar o amor que sentiam entre si e a saudade e importância
da mãe em suas vidas:
—
“Puta que o pariu, mano véio!!!”
Admito que possa haver
algumas distorções entre a realidade e o conto, mas, creia-me, foi quase assim.